Impacto da valorização imobiliária do litoral de SC x cidades sustentáveis

Consultor Jurídico
OPINIÃO
24 de setembro de 2023, 6h04

Por Evaldo José Guerreiro Filho

O litoral de Santa Catarina vem passando por um novo ciclo de valorização imobiliária [1] devido, principalmente, a uma nova expansão urbana sobre áreas que até então não haviam sido alcançadas por este fenômeno e em face do processo de renovação e expansão da construção civil sobre áreas já consolidadas das cidades existentes. Balneário Camboriú e Itapema, por exemplo, por mais que já vivam esse fenômeno há anos, estão se reinventando para dar conta das novas demandas. Outros lugares, como Piçarras, Porto Belo ou mesmo a capital do estado, estão sentindo a ampliação de fronteiras urbanas envolvendo avanços tecnológicos, mudanças nos seus planos diretores e um forte processo de valorização da terra urbana e dos imóveis construídos [2].

Esses dados passaram a ser noticiados constantemente na mídia local, alcançando até mesmo a mídia nacional. O fenômeno está diretamente relacionado ao fluxo migratório dos últimos anos[3], ao aperfeiçoamento da indústria da construção civil, ao incremento tecnológico que vem permitindo a elevação da altura do prédios (os maiores da América Latina), ao incremento em luxuosidade, e a variáveis sociais de qualidade vida que comparadas ao restante do Brasil permitem aferir ganhos e se demonstram ainda melhores do que em praticamente todos os outros lugares do país.


Moradias precárias na ilha de Santa Catarina, em Florianópolis
PM-SC
Isso, da mesma forma, vem retroalimentando fenômenos como o do fluxo migratório, não só pelo fato da qualidade de vida para um público já financeiramente consolidado, mas principalmente para pessoas em busca de oportunidades de trabalho e de uma vida melhor. Junto a esse novo mercado nascem novos loteamentos (abertos ou de acesso controlado) e condomínios empresariais e de moradia, novos serviços e a expansão mercadológica de serviços antes prestados pelo Estado, como abastecimento de água, saneamento básico, coleta de lixo, etc. Por consequência, esse mesmo fenômeno que atrai mais pessoas para a região, retroalimenta a valorização, em face da procura por imóveis para moradia ou para estabelecer seu negócio.

Por outro lado, esse processo de hipervalorização também gera muitos efeitos colaterais sobre determinados padrões sociais e de infraestrutura, como, por exemplo, a ampliação da dificuldade de acesso à moradia por pessoas que aqui vivem, principalmente àquelas que são assalariadas, de baixa renda, profissionais liberais, pequenos comerciantes, etc. Esse fenômeno de valorização vem tornando mais difícil a aquisição da "casa própria" ou mesmo o acesso a um imóvel alugado.

Pesquisa realizada pelo Programa em Planejamento territorial e desenvolvimento sócio-ambiental da Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina) no ano de 2021 constatou que 611 mil pessoas viviam em moradias precárias (domicílios improvisados, construções precárias ou destinadas ao comercio, morando de favor ou com aluguel superior a 30% da renda familiar), representando um déficit habitacional que atingia 203 mil famílias.

A Secretaria de Desenvolvimento Social do Estado de Santa Catarina calculava na época, junto aos municípios, que haviam "[...] 152.983 famílias em condições inadequadas, somadas a 53.549 famílias em situação de risco". "O total de famílias no déficit habitacional é de 206.532." [4]

O processo de valorização acentuada também faz dos imóveis um nicho de investimentos. Investir em imóveis nessa região virou um grande negócio, seja pela valorização seja pela possibilidade de ganhos com locações. Esse fenômeno faz com que várias cidades possuam boa parte de suas habitações (muitas vezes a maioria) inabitadas na maior parte do ano, aguardando a temporada de veraneio (outro fenômeno local) [5].

Todo esse processo produz uma grande dificuldade de acesso à moradia, não mais vista hegemonicamente por sua utilidade social e humana, mas apenas como mercadoria. Isso se amplia diante da ausência de políticas públicas que possam minimizar esse fenômeno. Por conseguinte, isso tem impulsionado ocupações clandestinas em áreas de risco, em áreas verdes e públicas, impulsionado processos de corticização ou mesmo de favelização e a realização de parcelamentos do solo clandestinos e irregulares, sobretudo, em áreas não urbanas.

Desta forma, é fundamental que os planos diretores destes municípios do litoral de Santa Catarina e toda a legislação urbanística local tenham prescrições compreendendo esse fenômeno e possam criar medidas compensatórias e mitigatórias no âmbito das cidades para equacionar e equilibrar o processo de crescimento econômico e populacional com padrões de sustentabilidade, envolvendo além do desenvolvimento econômico, o desenvolvimento social e ambiental, para as presentes e para as futuras gerações.

Infelizmente o que se percebe é o contrário. Prescrições legais que tendem a elevar o valor dos imóveis, como por exemplo quando o Plano Diretor de Itapema exige um "índice C", denominado índice de conforto, que delimita o número de apartamentos por andar dependendo da testada do lote (artigo 15, inc. II, da Lei Complementar 11/2002) [6], ou como previsto no Código de Obras de Porto Belo, que estabelece para determinada área da cidade o tamanho mínimo de 80 m² para a habitação, com obrigatoriedade de no mínimo duas vagas de garagem por unidade habitacional (artigo 143, §2º, da Lei Complementar 34/2011) [7].

No município de Balneário Camboriú, após a ampliação da faixa de areia da praia central, houve o protocolo de uma ação popular com a finalidade de proibir o replantio de vegetação de restinga, medida está tida como mitigatória da referida obra de alargamento da praia, contida na licença ambiental concedida pelo Instituto de Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina. A referida ação foi parar no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por meio da Apelação Cível nº 5010848-34.2022.8.24.0005, julgada improcedente pela Quinta Câmara de Direito Público. Na ementa do acórdão que decidiu a demanda, o relator, desembargador Helio do Valle Pereira, assim se manifestou:

Processo que representa pensamento contrailuminista, a reiteração (um despropósito contemporâneo) de visão oposta à solidariedade e que se insurge até contra o verde (que iria maltratar a paisagem...).
Cria-se o bandeirantismo praiano.
Apregoa-se que o litoral deva ser mantido como um amuleto tribal da falta de proteção, um local de idolatria pela perda das características naturais. A iniciativa é um proselitismo reacionário, que imagina um mundo distópico de falta de restrições à degradação, um panegírico da poluição, um terraplanismo ambiental, um avarandado da verdade alternativa, uma vanguarda do retrocesso naturalístico. [8].

Por sorte, bom senso e sapiência dos nobres julgadores, tal perspectiva não avançou, nessa lógica de incoerências e desrespeitos a qualquer padrão de sustentabilidade.

Voltando a questão do direito à moradia, são necessários mecanismos que permitam a confecção de habitações que atendam esse direito, reduzindo os impactos da hegemonia do mercado sobre esse bem da vida. Isso poderia ocorrer com a conformação de áreas específicas nas cidades para a constituição de zonas especiais de interesse social (Zeis), preferencialmente próximas aos equipamentos públicos existentes e aos eixos de circulação e mobilidade, ou das áreas onde esses futuros moradores já trabalham. Outra possibilidade são as parceiras público-privadas, em áreas institucionais ou em parte de prédios construídos com determinados incentivos construtivos, como a transferência de potencial construtivo, as operações urbanas consorciadas, os financiamentos públicos, ou a execução de políticas habitacionais pelo próprio poder público com recursos provenientes de outorga onerosa ou de outras ferramentas extrafiscais.

Todas essas adequações legislativas tem o condão de garantir a realização da função social da cidade e da função social da propriedade, previstas no artigo 182 da Constituição. A Carta Magna da República determina que o imóvel objeto do direito de propriedade não pode mais deixar sua função sócio-ambiental de lado, em busca exclusivamente do lucro ou de qualquer outra finalidade que beneficie apenas o seu proprietário. Essas exigências legais podem e devem ser garantidas pelo poder público e exigidas pela sociedade por meio do controle social.

Tal atuação pública (estatal e da sociedade) para a realização de planejamento e de controle social tendem a criar padrões de sustentabilidade porque conformam realidades que se adequam melhor ao conjunto dos interesses e direitos de todos. O fenômeno que orienta a constituição de uma cidade por um único segmento social tende a desequilibrar a qualidade de vida das demais pessoas que vivem neste ambiente, causando inúmeros problemas que vão além da precarização da moradia, às dificuldades de transporte e mobilidade, ao estrangulamento dos serviços públicos e das áreas de lazer, à uma configuração monocromática da economia, reduzindo a qualidade dos empregos, produzindo a redução da diversidade social, a constituição de guetos, o desequilíbrio da distribuição dos benefícios da cidade, etc.

Tanto a Constituição federal, quanto o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) ou o Estatuto da Metrópole (Lei 13.089/2015), como tratados e convenções internacionais procuram garantir condições de vida digna a todos em qualquer meio social, incluindo as cidades. Isso se observa também nos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentáveis, das Nações Unidas, seja quando aborda a redução da pobreza (ODS 1), o bem estar e a saúde (ODS 3), a igualdade de gênero (ODS 5), a garantia de água potável e saneamento (ODS 6), a constituição de cidades sustentáveis (ODS 11), a ação contra as mudanças climáticas (ODS 13)[9], etc.

O Estatuto da Cidade, em seu artigo 2°, inciso I, garante o direito à terra urbana, à moradia, ao transporte e à mobilidade, ao lazer, ao trabalho digno e à infraestrutura urbana, para as presentes e futuras gerações, como fator de sustentabilidade [10]. Isso significa, nos termos do próprio Estatuto, que não há cidade sustentável sem essas garantias para todas as pessoas.

O fato é que os efeitos colaterais causados pela hipervalorização, mesmo ampliando fatores econômicos, o que por um lado trazem alguns benefícios, estão, por outro, desequilibrando a relação destes com os elementos necessários para se garantir uma cidade sustentável e para garantir dignidade e qualidade de vida para todos.

Não se atentar para esse fenômeno e não realizar a conformação social e coletiva do caminhar da cidade e de medidas mitigatórias e compensatórias para o crescimento do litoral de Santa Catarina, é retirar de parcela significativa da população direitos básicos como o de morar, mover-se e circular, trabalhar e ter lazer.

Não permitir que todos acessem os benefícios do desenvolvimento da cidade, de forma sustentável, é contribuir para a formação de periferias cada vez mais distantes ou "escondidas" em áreas de risco, em ocupações irregulares, com ampliação de mais trânsito nas vias e com o espraiamento do perímetro urbano, consumindo áreas rurais e verdes, ampliando os gastos públicos e dificultando o acesso aos serviços garantidores dos direitos fundamentais.

 

Original: https://www.conjur.com.br/2023-set-24/guerreiro-filho-impacto-valorizacao-imobiliaria-litoral-sc2


[1] NOTÍCIAS DO DIA, Três cidades com maior valorização imobiliária do Brasil estão em Santa Catarina. ND+, 11/05/2023. Disponível em https://ndmais.com.br/economia/tres-cidades-com-maior-valorizacao-imobiliaria-do-brasil-estao-em-santa-catarina-veja-quais/. Acessado em 20/09/2023.

[2] TOLEDO, Marcelo. Balneário Camboriú gera onda imobiliária no litoral de Santa Catarina: cidades como Porto Belo e Itapema constroem edifícios em profusão, e empresa vende 260 terrenos em apenas um dia. Folha de São Paulo: economia, 02/09/2023. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/09/balneario-camboriu-gera-onda-imobiliaria-no-litoral-de-santa-catarina.shtml. Acessado em 20/09/2023.

[3] AGÊNCIA BRASIL, Censo 2022: quatro cidades de Santa Catarina tem aumento populacional. Radioagência, 30/06/2023. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/economia/audio/2023-06/censo-2022-quatro-cidades-litoraneas-de-sc-tem-aumento-populacional#:~:text=Santa%20Catarina%20foi%20o%20segundo,1%2C3%20milh%C3%A3o%20de%20moradores. Acessado em 20/09/2023.

[4] ARTMANN, Erika. SC tem 611 mil pessoas em moradias precárias e inadequadas, apontam pesquisa: pesquisadores da UDESC analisam os números disponíveis sobre moradia e concluem que “cidade dos sem-teto” é maior que a população de Joinville. ND+: infraestrutura, 20/06/2022. Disponível em https://ndmais.com.br/infraestrutura/sc-tem-611-mil-pessoas-em-situacoes-de-moradias-precarias-aponta-pesquisa/. Acessado em 20/09/2023.

[5] BATISTELLA, Paulo. Nove cidades de SC tem mais residências desocupadas do que com moradores: imóveis desocupados são, em maior parte, de uso ocasional, segundo o Censo 2022. Diário Catarinense: cotidiano, 04/07/2023. Disponível em https://www.nsctotal.com.br/noticias/nove-cidades-de-sc-tem-mais-residencias-desocupadas-do-que-com-moradores. Acessado em 20/09/2023.

[6] ITAPEMA, Lei Complementar 11/2002. Disponível em https://leismunicipais.com.br/plano-de-zoneamento-uso-e-ocupacao-do-solo-itapema-sc. Acessado em 20/09/2023.

[7] PORTO BELO, Lei Complementar 34/2011. Disponível em https://leismunicipais.com.br/codigo-de-obras-porto-belo-sc. Acessado em 20/09/2023.

[8] SANTA CATARINA, TJSC, Apelação Cível nº nº5010848-34.2022.8.24.0005, Rel. Helio do Valle Pereira, j.10/11/2022. Disponível em https://eprocwebcon.tjsc.jus.br/consulta2g/controlador.php?acao=acessar_documento_publico&doc=321669125604567224071000031620&evento=321669125604567224071000050076&key=7bc96ef96df3d396ac58741e4c88282ce9a1c4100d8b9a4918a8aa2ae21116ea&hash=3d4bffa50d527a8b73c0ecec3c82430d. Acessado em 20/09/2023.

[9] NAÇÕES UNIDAS BRASIL, Sobre o nosso trabalho para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil, Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, 2022. Disponível em https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. Acessado em 20/09/2023.

[10] BRASIL, Lei 10.257/2001. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acessado em 20/09/2023.

Evaldo José Guerreiro Filho éadvogado, mestre em direito pela UFSC, professor da Faculdade de Direito Uniavan e da Escola Superior de Advocacia (ESA-SC), membro da Comissão de Direito Urbanístico da OAB-SC, procurador e secretário de Governo e Planejamento Estratégico de Itapema-SC (2006-2011), prefeito de Porto Belo-SC (2013-2016), assessor jurídico-parlamentar na Assembleia Legislativa de SC (2017-2018).

Revista Consultor Jurídico, 24 de setembro de 2023, 6h04